terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Retrato do ruralista no Brasil, por Cláudio Angelo

Maurício Lopes, um ruralista chique

clique no link acima para o texto original.



CONHECI MAURÍCIO LOPES EM 2012, enquanto preparava uma reportagem sobre a crise do etanol brasileiro e formas de sair dela. O recém-assumido presidente da Embrapa me recebeu em seu gabinete para uma conversa longa. Saí encantado: a principal instituição de pesquisa aplicada do Brasil tinha um cientista com C maiúsculo em sua chefia. Um pesquisador que estava disposto a transformar a maneira como a instituição fazia inovação tecnológica, gerando não apenas produtos e dados, mas também cenários e inteligência. No governo Dilma Rousseff, o mais obscurantista e anticiência da Nova República (claro, eu ainda não sabia o que viria pela frente em 2016), ter aquele homem naquele cargo era mais do que um alívio; era um sinal de que o Brasil tinha jeito.
Obviamente não tem. Brasília parece exercer um efeito de Midas reverso sobre as pessoas, transformando o mais revolucionário e promissor gestor público num paladino do status quo. O Maurício Lopes que emergiu neste domingo (11) num artigo de opinião no Correio Braziliense parece estar à beira disso. No lugar do raciocínio baseado em evidências que caracterizou a sólida trajetória acadêmica do presidente da Embrapa, o artigo, intitulado “Fatos e mitos sobre agricultura e meio ambiente”, esbanja justamente aquilo que se propõe a denunciar: “desinformação, análises rasas e preconceito”.
O chefe da mais respeitada instituição de pesquisa agropecuária tropical do planeta é a voz mais recente a engrossar o coro do “agropop”. Trata-se de uma linha de discurso (ou “narrativa”, para usar o clichê da vez) segundo a qual o Brasil é o país mais sustentável do planeta, tem a agricultura mais produtiva e mais conservacionista da Via Láctea e qualquer crítica a essas virtudes é “desinformação, análise rasa e preconceito” – quando não uma defesa mal-disfarçada de interesses de nossos competidores internacionais.
Entre os principais ideólogos do “agropop” estão Evaristo de Miranda, subordinado formal de Maurício Lopes, que pilota a Embrapa Monitoramento por satélite, e o ex-diretor da BRF Marcos Jank. Miranda caiu nas graças da bancada ruralista durante o debate do Código Florestal no Congresso, quando produziu um cálculo amplamente contestadosegundo o qual a legislação ambiental inviabilizava a expansão do agronegócio ao retirar terras de produção. Desde então, semeia estatísticas parciais sobre as lindezas do agro brasileiro, municiando autoridades como o ministro da Agricultura, Blairo Maggi.
A escola de pensamento dessa patota postula que o único problema do agronegócio brasileiro é de comunicação. O Brasil, raciocinam, divulga mal todo o esforço que faz pelo meio ambiente, e como resultado vira presa fácil de “desinformados” (o sujeito oculto da frase são ONGs ambientalistas). Fazia falta nesse time alguém que não seja obviamente enviesado, caso de Maggi (um fazendeiro) e Jank (um alto-executivo da agroindústria), e que tenha boa reputação no mundo acadêmico. Maurício Lopes, com seu Lattes inatacável, traz a pátina chique de que o agropop precisava.
Em seu artigo, o presidente da Embrapa começa enunciando uma verdade: toda criança brasileira deveria aprender na escola que o Brasil ocupa no mundo o lugar duplo (e não necessariamente conflitante, acrescento) de país megadiverso e grande produtor de alimentos. É preciso, sem dúvida, ampliar a compreensão dos alunos sobre o papel do país na segurança alimentar e ambiental futura da humanidade.
Só que a partir daí o texto vai ladeira abaixo. Segundo Lopes, “há crescente disseminação de pessimismo e mitos, que inflam os problemas e desqualificam os avanços que o país alcançou na agricultura e na gestão dos seus recursos naturais”. Incrivelmente, ele mesmo dissemina na sequência não um, mais dois mitos sobre o agronegócio e o meio ambiente:
“Todo brasileiro precisa saber que nosso país foi o único capaz de construir uma ousada política pública, o Código Florestal, que tornou obrigatória a conservação de florestas nativas e a proteção de nascentes e margens de rios nas propriedades privadas, o que perfaz 20.5% de toda a superfície do país. E todo mestre precisa informar com orgulho aos seus jovens estudantes que o Brasil é, de longe, a maior potência ambiental do planeta, e que nenhum país chega perto da sua cobertura florestal nativa, que alcança nada menos que 66,3% do nosso imenso território, índice que chega a 80% na Amazônia.”
A visão de que o Código Florestal brasileiro é uma jabuticaba é um boilerplate do agropop. Mas não é bem assim. Na verdade, vários países têm legislações regulando a proteção de florestas em áreas privadas, como mostrou esta nota técnica feita pelo Imazon e pelo Proforest sob encomenda do Greenpeace em 2011. Na França, por exemplo, conversão acima de 4 hectares depende de autorização do governo. No Japão e no Reino Unido, florestas em áreas privadas não podem ser derrubadas. O Código Florestal brasileiro (que, lembremos, não é de 2012, e sim de 1965, e não foi “construído”, mas sim enfraquecido nesta década pela bancada ruralista) tem, de fato, particularidades. Mas o Brasil tem particularidades: é maior produtor agrícola na zona tropical. Não se pode exigir aqui uma legislação como a de países temperados cuja biodiversidade total não chega à de um hectare de uma floresta amazônica.
A famosa cifra dos 66% de vegetação nativa é outro dado que resiste mal ao escrutínio. Lopes deveria saber disso melhor do que ninguém, pois morou num país que tem quase tanta floresta quando o Brasil, a Coreia do Sul (63% do território, segundo o Banco Mundial). Mas há outros: Suécia (69%), Japão (68%), Gabão (89%) e Suriname (98%), para citar apenas alguns. Por essa lógica, será que governantes japoneses vão aos jornais se gabar de serem “a maior potência ambiental do planeta?” Acho que eles preferem vender videogames.
Segue o presidente da Embrapa:
“Acontece que a agricultura dita vilã, ávida consumidora de terras e da maioria das reservas hídricas, não existe no Brasil. Nosso país produz todas as suas lavouras e florestas plantadas em 10% do território e, apesar de detentor de 12% das reservas de água doce do planeta, sua produção de alimentos depende prioritariamente de chuvas. A maioria das nossas fazendas toma emprestada da natureza a água da chuva, que iria aos rios e oceanos, e a devolve limpa, com a evaporação, transpiração e infiltração no solo. O que deve preocupar a sociedade é o impacto da urbanização na gestão dos recursos hídricos.”
O dado dos “10% de lavoura” é um caso clássico de cherry-picking, nome dado ao ato de pinçar um número parcial que favorece a tese de alguém. De fato, a agricultura ocupa cerca de 8% do território brasileiro. Somando as florestas plantadas, chega-se provavelmente a 10%. Mas, ei, Maurício, você não está falando de “produção de alimentos”? Cadê a pecuária na sua conta? Somando-se os cerca de 65 milhões de hectares de agricultura e os 280 milhões de pastagens, tem-se cerca de 33% do território nacional tomado pela “produção de alimentos”. Não é muito nem pouco; é a média mundial. Um número mais próximo dos 38% chamados por Lopes de “média genérica” e “de frágil comprovação” do que de 10%.
Sobre água, antes de dizer que “inexiste no Brasil” a agricultura “consumidora da maioria das reservas hídricas”, Lopes deveria dar uma espiada na Conjuntura dos Recursos Hídricos do Brasil, cuja última edição foi publicada em 2017 pela Agência Nacional de Águas. O relatório põe a irrigação como maior usuário de água do país, com 969 metros cúbicos por segundo em 2016. É mais do que a soma de todos os outros usos, excluindo a pecuária. É fato que a maior parte das propriedades do país (que são da agricultura familiar) depende da chuva. Mas quão limpa essa água é devolvida é objeto de debate: como maior consumidor do mundo de agrotóxicos (não por perversidade, mas simplesmente pelo fato de sermos um grande país agrícola tropical, muito mais sujeito a pragas que EUA e China) e um dos maiores consumidores de fertilizantes, o Brasil tem índices altos de poluição por pesticidas e nitratos em algumas bacias. Um estudo da própria Embrapa de 2014, por exemplo, detectou resíduos de diversos agrotóxicos em medições realizadas em todas as regiões do país, embora tenha alertado para a escassez de monitoramento.
Sobre mudança climática, Lopes parece espantosamente mal brifado:
“Mudança climática é outro tema frequentemente usado para se criticar o Brasil de forma injusta. Nossos pesquisadores e produtores constroem hoje a próxima revolução da agropecuária tropical, com sistemas integrados capazes de operar 365 dias por ano, ciclando lavouras, pecuária e floresta, em modelo inédito de produção sustentável de baixa emissão de carbono. O ministro Blairo Maggi apresentou, durante encontro de 70 ministros da agricultura ocorrido em Berlim, em janeiro de 2018, processo inédito de produção de “carne carbono neutro”, uma resposta concreta do Brasil à cruzada global contra a pecuária bovina. O nosso país já é líder global no uso do plantio direto, da fixação biológica do nitrogênio e dos sistemas integrados de produção, tecnologias que nos colocam na vanguarda do desenvolvimento da agricultura de baixa emissão de carbono.”
Vamos aos números. Mas antes um disclaimer: eu trabalho para a rede de organizações que produz os dados, cuja metodologia é aberta e que são tão sólidos que são utilizados até mesmo por pesquisadores do governo. Em 2016, último ano para o qual há estimativa, o Brasil emitiu 2,278 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa (sétimo maior emissor do mundo). Desse total, 51% foram causados por desmatamento (para produção agropecuária ou especulação fundiária para agropecuária) e 22% diretamente pela agropecuária (pelo consumo de fertilizantes e pelo metano do rebanho, o popular “arroto do boi”). Portanto, 1,6 bilhão de toneladas de gases de efeito estufa emitidos em 2016 estão na conta do agro. É mais do que tudo o que o Japão emite em um ano.
Dito isso, esses números não são uma sentença. Zerar o desmatamento e produzir nas terras já abertas é possível, desejável e barato. E há vasta literatura científica mostrando que é possível produzir carne sequestrando carbono, ao recuperar pastagens degradadas. Só que para isso é preciso investimento. E, em que pese o marketing da carne “carbono zero” do ministro Maggi, neste momento ela ainda é uma espécie de clean coal brasileiro: os investimentos no programa de agricultura de baixo carbono não chegam a 2% do Plano Safra. No ritmo atual, o Brasil não cumprirá nenhuma de suas metas de recuperação de pastagens.




Maurício Lopes continua sendo um cientista com C maiúsculo, e sorte da Embrapa ter um presidente assim. Mas, em nome do próprio currículo, deveria pensar melhor antes de pular no carro de boi conduzido por seu chefe.
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